UMA POESIA
DAS SENSAÇÕES
Leonel
Ferreira entre vida e transcendência
Vinícius Fernandes Cardoso
“Toda
teoria é cinza e só é verde a árvore de dourados frutos, que é a
vida.”
Goethe
Tempo e espaço, Cronos
e Atlas
Leonel
Ferreira Melgaço Ribeiro nasceu a 25 de novembro de 1983, em Belo
Horizonte-MG, sendo, logo, de Sagitário, signo tido como tendente a liberdade e
realização. O poeta conta em breviário biográfico, presente no seu livro Paisagens Polifônicas (2010), as
circunstâncias nas quais veio ao mundo:
“Nasci, pela primeira vez, numa tarde
quase noite em 25 de novembro de 1983, na cidade de Belo Horizonte, local que
me proporciona a matéria-prima daquilo que chamo de lirismo áspero e tecido de
dor. (...)”.
Esse é trecho do breviário biográfico
convencional, mas Leonel também nos oferta um poético, constante nos seus Florais do Tempo (2009), escrito à
maneira de um Walt Whitman:
“eu Leonel Ferreira... mineiro... feito
da junção de um belo horizonte... rompido numa tarde quase noite... mais dia
que noite... tarde noite... em novembro de 1983... eu vate de vivências
extremas... sagitariano... raposa das estradas derramadas em versos
multicolores... (...)”
Até onde sei, Leonel sempre habitou a
região limítrofe entre os municípios de Belo Horizonte e Contagem, entre os
bairros Camargos e Santa Maria, respectivamente. Estar entre é
sintomático dele: entre lugares, entre casos amorosos, entre crenças, entre
ocupações, entre identidades, entre eus. Feita a localização no espaço
geográfico, é bom lembrar que o nosso poeta teve as suas vezes de viajante
solitário-beatnik, estradando pelo país, tendo a cidade do Rio de
Janeiro como um dos seus destinos preferidos, seja para desafogo das exigências
do trabalho, seja para expansões que a fixação em BH, a seu ver, não permitia.
Lembro-me das suas narrações de viagens, sempre floreadas e ricas de detalhes.
Existência e
transcendência
O jovem vintanista Leonel transmitia uma
forma encantada de ver a existência e a condição humana, sendo muitos os momentos
para exemplificar tal afirmação, fiquemos apenas com um, quando, num “Banquete
de Ideias”, promovido pelo filósofo e poeta Rodrigo Starling, realizado no
SESC da Rua Caetés, em BH, ante a questão “Deus existe?”, respondeu que
“sentia Ele”.
O
que é “ser humano”, perguntaria o inquieto leitor? Não há consenso.
Particularmente, gosto de uma reflexão minha mesma, que compreende o ser humano
como um estado de estar entre; aos materialistas, “um corpo com
um espírito”, aos espiritualistas, “um espírito com um corpo”. Ora, “estar
entre”, como dissemos lá atrás, é fichinha para o nosso poeta, dilema que
desencadeou nele, nos seus vinte e poucos anos, talvez insatisfeito com as
intermináveis querelas filosóficas, toda uma busca por “Verdade”, como
pretensões de “V” maiúsculo.
Para
tanto, ele frequentou quase todas as religiões, doutrinas e filosofias
disponíveis na região metropolitana de BH e alhures, frequentou missas
católicas, cultos e cantos protestantes, ritos afro-brasileiros, adentrou no
reencarnacionismo kardecista e namorou a Cultura Racional, até chegar à sua
própria “síntese cósmica”, dificílima, indecifrável, que ele explanava sem
pregar, sem proselitismo. Como pensador-poeta, isto é, que utiliza a metáfora
ao pensar, Leonel encontrou, na poesia, uma espécie de síntese frente
aos sucessivos relativismos, quem sabe, pensando que, se a um filósofo é dado
questionar, a um poeta é pedido sintetizar. Nesses pensares, Leonel era danado
para ter sacadas geniais, uma delas, era a sua noção de “sintonia”, aplicada
à relação erótico-amorosa.
No
campo profissional, psicologicamente e sociologicamente importante para a
integração identitária do indivíduo na sociedade ocidental, o jovem Leonel foi
servidor-efetivo da Bhtrans
(autarquia do município de Belo Horizonte) nos inícios de 2000 (?!), numa época
na qual os seus amigos poetas amargavam o desemprego, sendo ele sempre generoso
nas contas de bar, nas esmolas a pedintes e, evidente, nas passagens de ônibus!
Parecia emprego razoável, mas Leonel, talvez num misto de tédio, estafa e
ímpeto de voo, pediu exoneração do cargo. A sua acomodação profissional, se
assim podemos dizer, se deu alguns anos depois, no comércio varejista e
atacadista. Houve, porém, interregnos até Leonel chegar ao comércio, quando ele
tentou algum sustento com os seus poemas; criou uma editora caseira e
confeccionou os seus próprios livros, vendendo-os nas ruas, principalmente em
frente ao Palácio das Artes, em BH.
Entre meados de 2008 a meados de 2010, fiz
um estágio, durante o período vespertino, na Rua Tupis, no Centro de BH. Parte
desse período coincidiu com as vendas do poeta em frente ao PdA, de forma que,
às vezes, eu me encontrava com ele após o expediente de ambos, a fim de
colóquio ou convite para algum evento, mas nos conhecíamos desde antes,
sobremaneira dos saraus do Parque Lagoa do Nado e dos “Uivos na Noite”
(Centro Cultural São Bernardo). Leonel participou por duas vezes (2005 e 2006)
do projeto “Terças Poéticas”, sob a curadoria do poeta Wilmar Silva, nos
ditos jardins internos do PdA, numa dessas ocasiões, a sua família compareceu.
Participou do projeto “Poesia na Praça Sete” (2010), do casal de poetas
Rogério Salgado e Virgilene Araújo. O menino fazia estrada e currículo.
Houve um período límbico, porém, que não
sei precisar no tempo, no qual o nosso poeta, talvez frustrado com as
dificuldades e limitações das vendagens nas ruas como modo de vida, fez recuo
estratégico e ‘suspendeu’ a sua faceta de poeta, enfatizando outra faceta sua,
a de empreendedor, circunstância que eu aferi no seu Facebook (rede
social da Internet), quando ele trocou o seu perfil de “Poeta Leonel
Ferreira” para “Empresário Leonel Ribeiro”, manipulando sobrenomes
conforme o estado psíquico vivido.
Ora, todo ser humano passa por crises de
identidade, algo comum e recorrente; o artista, então, sofre muito com isso,
entre as ingratas artes e a adaptação a uma sociedade que cobra resultados
práticos e materiais. Eu não via problema algum nele querer ganhar dinheiro, só
não entendia que, para isso, ele precisasse, necessariamente, negar o seu
talento de poeta. Foi quando, sentido a sua ausência e empático com a sua
situação, escrevi um poema intitulado “A um poeta cósmico”, dedicado a
ele, datado de fevereiro de 2008. Eis o poema:
Ó poeta cósmico dos Camargos caminhos,
hedonista dos prazeres femininos e arauto
do saraus enluarados,
tu que tens dentro a festa, dândi
suburbano das sociais vestes,
Ó poeta da religação, monge sem religião,
difusor de espiritualidades indecifráveis,
Andarilho da geração castrada, preocupando
mãe e namorada.
Onde andas Leonel que não mais presenteia
a vida literária,
de convenientes contatos, chão de ovos,
mas de tua raça laia,
foram-te maus amigos tal gente
desencontrada?
Ó poeta dos adjetivos, onde andas nessa
vida de estrada?
Nós que quando nos encontrávamos, sempre
oportunamente, nos festejávamos?
Ainda escreves? Ou encontrou material
melhor para despejar tua pulsão?
Ou encontrou de fato a felicidade? (A
escrita contenta, mas sei que para ti não bastava).
Era boa tua companhia com nossa turma nas
madrugadas, nas caminhadas errantes a procura de nadas, encantos que nos
enchiam curando cotidianos enfados, mas, agora, ausente, registro tua
falta...
Ó poeta verborrágico de sorriso largo,
vislumbrado por tudo e festeiro do asfalto...
Onde está tua verve que enchia o ar de
palavras?
Tu, caminhante de beiras de autoestradas,
viajante solitário em busca de amadas,
Tu que tens o senso do divino, duvidando
das letras, desencantando da gentalha...
Ó leitor de Cruz e Souza e autor das
ressonâncias do ocaso que esbravejava seus versos às faces enfastiadas, onde
andas, num mosteiro ou nas praças abandonadas?
Tu, perseguidor da transcendência,
encontraste-a? Descobriste-a na imanência?
Tu, ausente, tens o lugar assegurado, no
assento, no tablado, tu, poeta cósmico!
“Um poeta
ressuscitado”
Após a leitura do poema, Leonel retomou o
seu anterior perfil no Facebook e, mais importante do que isso, ele
reassumiu a sua faceta de poeta! Em momentos de descontração entre comuns, já
galhofei que “ressuscitei Leonel”, em tom espirituoso, para graça geral. Era
uma forma bem humorada que encontrei para aliviar um assunto deveras doloroso.
Quem não passou por crises de identidade,
por fases de indecisão ou mesmo pela sensação de estar perdido na vida? Por eu
ter passado por crises do gênero, sou empático às alheias. Um dia, ainda
componho um poema que sirva de cura terapêutica aos perdidos na vida, de forma
que, ao fim da leitura, o leitor encontre-se e pacifique-se, de preferência,
por muitíssimo tempo (leiam “Oração de mim mesmo”, de minha autoria).
Dito isso, ao ouvir o psicanalista Geraldo
Caldeira (que admiro) em uma das suas aparições no jornal MGTV, da Rede
Globo Minas, que imagino lidar com tal assunto há mais tempo
clinicamente, ouvi dele que a melhor prevenção à depressão (boto à
reboque, por minha conta, indecisão, crises de identidade e
congêneres) é a convivência, o que faz sentido, pois, é no entrave das
diferenças de personalidade que identificamos ou confirmamos a nossa; outra
prevenção, penso, é ter a sabedoria que o ser humano é mutável, troca de pele
ao longo da vida; reconhecer, humildemente, a nossa natureza “mutante”, penso,
pode ajudar a nos aceitar como somos e estamos.
Você gosta de poesia?
Leonel ressurgiu em 2015 em plena
criatividade, com o pseudônimo de L.
Lagares, o que insinua que as suas trocas de pele continuam a todo vapor
e que também podemos esperar novas safras suas, a exemplo da prosa Aquarela de um sonho distorcido (2015),
de tônica confessional.
Nos dias em que eu trocava figurinhas com o
poeta, por volta de 2009 e 2010 (as datas mentem), consegui quatro livros dele,
produzidos pelo autor de forma artesanal, sob o selo “Nix Edições” (nove-hora),
bem feitos por sinal, em papel reciclado, com interior recheado de arabescos,
bordas e cantoneiras, lembrando de longe as edições “art nouveau”
francesas. Importante noticiar, em tais livros, não a ordem editorial, mas a
ordem cronológica dos poemas, o que pode ajudar a captar alguma genealogia dos
mesmos e alguma modulação temática e estética ao longo do tempo.
Se por firula ou loucura, não importa,
acontece que Leonel dispersou a sua obra entre muitas coletâneas e títulos, seu
mais recente blog (http://llgares.blogspot.com.br) elenca a seguinte
obra publicada: Ressonâncias do ocaso
(2008), Paisagens Polifônicas (2010),
Sinfonia do (eu) Quebrado (2014), Florais do tempo (livreto 2008) e Aquarela de um Sonho Distorcido (2015),
mas sabemos que a sua obra publicada teve outros nomes, inclusive, reuniões de
poemas não publicados, como “Kappus de
Delacroix e os Delírios Inevitáveis”, “Líquido
Atroz” e “Ortobiose e Outras
Hiperestesias”.
Atenho-me, como não poderia deixar de ser,
ao que li, a começar por Hipertesia,
versos escritos entre “2007, 2008 e um de 2010” (costumo considerar os
primeiros versos de um poeta importantes, sintomáticos); é o livrinho mais
fininho dos quatro lidos, talvez daí a informação “Fanzine”, presente na
capa. Na sequência, li Florais do tempo,
com versos escritos na “primavera de 2009”, onde consta a biografia
poetizada, citada no início. Em seguida, Ressonâncias,
datado do “verão de 2010”. Por fim, li o conjunto Paisagens polifônicas, de “dezembro
de 2010”, onde há a biografia convencional, além de dedicatória informativa
e reveladora.
Infelizmente, não tenho comigo a coletânea
Ressonâncias do ocaso (2008) aqui
agora para folhear de cabo a rabo, mas posso ter lido poemas presentes nela,
uma vez que nosso poeta tem o vezo de reproduz os mesmos poemas noutra
reunião.
Uma poética das
sensações: sinestesias, biologismos
A poesia de Leonel Ferreira transmite
sensações, logo, é natural que ela valha-se de recursos literários que as
expressam, como é o caso da sinestesia, recorrente. O bom e velho Dicionário Aurélio ensina-nos que
sinestesia vem do grego “aísthesis”, “sensação”, significando:
Relação subjetiva entre uma percepção e
outra que pertença ao domínio de um sentido diferente (por exemplo, um perfume
que evoca uma cor, um som que evoca uma imagem. Exemplos: “Avista-se o grito
das araras” (João Guimarães Rosa); “Tem cheiro a luz, a manhã nasce... /
Oh sonora audição colorida do aroma!” (Alphonsus de Guimaraens)
Vejam vocês, há sinestesias até nos
títulos dos livros do nosso poeta, como Florais
do tempo e Paisagens polifônicas;
mesmo nos outros livros citados, exploram-se as sensações: Hipertesia, soma do prefixo “hiper” com
o substantivo “estesia”, resume Aurélio Buarque de Holanda, é a “sensibilidade
excessiva a qualquer estímulo”; Ressonância,
como todos sabem, é o ato de
ressoar, fazer soar, entoar e outras acepções relacionadas a som. No poema “Patamares
do Silêncio”, fora a sinestesia, há a presença das maiúsculas
alegorizantes, ao gosto do Simbolismo, outro recurso largamente utilizado por
Leonel Ferreira.
Na sua poesia, há forte presença de
vocabulário biológico, como o recorrente “ortobiose”, verdadeiro achado do
nosso poeta, cujo significado nos assegura o citado pai dos burros:
Vida normal ou conforme as leis da
natureza: “a civilização nunca conduziu, nem conduzirá, à felicidade, à
harmonia, à ortobiose humana” (Júlio Dantas, Espadas e Rosas, p.
50).
Os biologismos em L.F., geralmente, estão
associados ao erotismo, aliás, força motriz da sua poesia. Quando tais
biologismos não estão associados ao erotismo? Por vezes com função
naturalista-harmonizante, como “ortobiose”, mas também “meiose estabelecida” (Fremente
Efemeridade), “meiose”, “mitose” (Elástico), fora outros empregos.
No mais, os termos referentes à materialidade biológica constitutiva do ser
humano estão associados ao sexo: “Prazeres orgânicos”, “Explosões do íntimo”,
“Consubstanciação corpo e alma”, títulos de poemas ou sequências poemáticas
presentes em Paisagens polifônicas.
Dito isso, o leitor, rápido e rasteiro,
logo pensará: “Ah, esse cara é apenas um tarado, só isso”, ou então, com ares
intelectuais: “A poesia dele é apenas uma das manifestações do seu erotismo”.
Acontece, caro leitor, que um Poeta nem sempre é um jogo de cartas
abertas, ora, artimanhoso, joga com carta a menos, ora, trapaceiro, joga com
carta a mais. Vejam vocês, em Paisagens
polifônicas, há uma sequência poemática que destoa de todos os outros
poemas presentes na coletânea, refiro-me ao enigmático “Poemas para Isa”
(pgs. 79-94). Ali está um poeta altaneiro cantando a uma amada não possuída: “Minha
alma peregrina e extravagante / gostaria de leva-la no alto de uma colina /
onde houvesse um altar estranho e silencioso / para então sermos atados / em um
sopro de eternidade (...)”.
Vejam como mudou a forma de abordar, não
mudou?
“Poesia beatnik-simbolista”
Antes de escrever este texto, confesso,
fiz uma pesquisa no site de busca Google,
a fim de encontrar referências a Leonel Ferreira, não somente sobre ele
enquanto indivíduo e poeta, mas em relação aos seus poemas, já esperando
encontrar alguma coisa vinda de Leonardo de Magalhaens, escritor, poeta,
crítico e tradutor mineiro, além de amigo comum meu e de Leonel. Não deu
noutra, o Google apontou excerto
de ensaio do Magalhaens, não exclusivo sobre a poesia de Leonel, mas trecho de
ensaio sobre originalidade na Literatura, no qual Magalhaens cita:
(...)
Lembrei em seguida do poeta e bardo Leonel Ferreira, que - segundo as boas
críticas - faz uma interessante fusão de Cruz e Sousa e Fernando Pessoa,
associando formalismo e subconsciência, em descrições grotescas e líricas de
sua poesia beatnik-simbolista. (...)
Desdobrando, aproveito a deixa do
crítico para tratar das “influências literárias” de Leonel Ferreira, assunto
geralmente falho e passível de refutações. Para não nos perdemos, primeiro
desconsidero as influências do nosso poeta enquanto leitor e ser humano, ficando
apenas com as influências que nos importam aqui, qual sejam, aquelas que possam
ter se plasmado aos seus versos formalmente realizados, o que se materializou
em escrita, deixando rastros de poéticas de outros autores.
Magalhaens teve motivos para citar Cruz e
Souza, Fernando Pessoa e a poesia beatnik como influências de L.F.; Cruz
e Sousa, provavelmente, pelas sinestesias, aliterações, maiúsculas
alegorizantes, figuras de linguagem, temática, além de identificação biográfica
com o autor de Missais e “O Emparedado”, o que me parece
acertado. Não duvido que Leonel identificou-se com Fernando Pessoa como leitor
e ‘pessoa’, só não sei se tal influência se materializou em sua linguagem
poética, sobremaneira na questão dos heterônimos pessonianos. Sim, vejo
inquietações de “eus” no indivíduo Leonel, como disse no início, mas não nos
seus poemas que, a meu ver, apresentam a mesma voz poética, as mesmas temáticas
recorrentes (sensações, erotismo), não vejo um heterônimo “a” distinto de um
heterônimo “b” ou “c”, como lemos nos heterônimos do grande bardo lusitano.
Quanto a alguma influência da poesia beatnik
(EUA, 1950-1960) em Leonel Ferreira, novamente, a vejo mais no leitor e no
indivíduo estradeiro, como explanei no início. “Ah, Vinícius, questiona o
corajoso leitor que chegou até aqui: vida e obra não vão juntas? o poeta
não é fusão de eu-biográfico e eu-lírico?”. Ainda não resolvi isso totalmente
(me perguntem em ensaios seguintes), mas penso que sim, desconfio que nos
autores que vivem antes de escrever, sim, é possível que o poeta seja uma fusão
de eu-lírico e eu-biográfico, mas voltemos e continuemos.
Como
sabem, não há uma “poética beatnik”, existem os poemas de Allen
Ginsberg, os de Gregory Corso, de Carl Solomon, de Ferlinghetti, exponentes da beat
generation, cada poesia diferente da do outro, talvez unidas por um único
recurso, qual seja, a indexação, isto é, a citação de
circunstâncias, lugares, pessoas e épocas datadas. Ora, Leonel só indexa
pessoas e lugares aos seus poemas nas dedicatórias e informações finais,
quando, às vezes, coloca o local onde escreveu (“derramou”, como ele
diz) o poema: o Cais Marina da Glória, na cidade do Rio de Janeiro é campeão de
citações nesse quesito, onde, perto dali, o poeta pernoitou em praça. Dito
isso, vejo uma espontaneidade, uma atmosfera rueira, um libertarismo temático
nos poemas de Leonel, que lemos nos poemas dos beat’s.
Mentores que encorajam
Antes das “influências literárias”
autorais, percebo nos poemas de Leonel Ferreira uma presença naturalista e
simbolista. Na sua poesia, há vocábulos próprios da Biologia, achados com lupa
no dicionário, a fim de expressar os seus pensamentos que “fundem” materialismo
com utopias harmonizantes (é o caso de “ortobiose”), juntinho com figuras de
linguagem próprias do Simbolismo; Leonel quer fundir, quer interpenetrar
contrários. Não é à toa que nosso poeta bebeu em Augusto dos Anjos (1884-1914),
que lhe serviu de fonte para sorver vocábulos cienticifistas, materialistas,
biologizantes, trabalhados com ‘poeticidade elevada’. Cruz e Sousa lhe muniu de
recursos de linguagem e multiplicidade de gradações sensoriais, transfiguradas
em belas letras, além de identificação enquanto poeta negro no Brasil, o caso
de Leonel.
O breviário biográfico poético, citado no
início, remete-nos a outro mentor e influência que penso ele ter, refiro-me a
Walt Whitman; reconheço, naquele breviário Leonel abusou das reticências, mas,
ora bolas, ele se saiu bem, penso que leva jeito para explorar aquela dicção
exuberante e vigorosa do grande bardo americano, vivência e estofo Leonel possui.
Mentor é aquele a quem nos identificamos e
que nos encoraja a seguir o nosso carma (o conjunto das ações dos homens e suas
consequências), seja nas realizações da vida, seja na escrita (que não deixa de
ser realização). Ora, Leonel tem as suas declaradas, a começar por José Carlos
do Patrocínio (1854-1905), um dos mais ferventes próceres a favor da abolição
da escravatura no Brasil, ou simplesmente o “tigre da Abolição”, como nosso
poeta mesmo nos informa no seu livro Ressonâncias
(2010), onde dedica três páginas sobre vida e obra daquele jornalista, orador,
poeta e romancista carioca novecentista e uma página com o poema “A memória
de Tiradentes”, de José do Patrocínio, publicado originalmente no jornal “A
República”, em 1871.
Negro, literato e libertário, assim como
Cruz e Sousa e José do Patrocínio, compreensível Leonel tê-los em alta conta e
ser leitor da obra de ambos. Aliás, ele é ledor de vasto repertório, algo que
infelizmente não trataremos aqui. Avante!
Influência e renovação
Ao citar as observações de Leonardo de
Magalhaens sobre a poesia de Leonel Ferreira, quero aproveitar o que já foi
refletido para tentar avançar. Desdobrando, temos mais esse trecho de
Magalhaens, no qual ele menciona alguma possível associação de “formalismo e
subconsciência em descrições grotescas e líricas” na poesia de L.F.
Se fosse para sintetizar, aqui eu diria o
seguinte: sua poesia desequilibra-se entre formalismo e subconsciência, pecando
no primeiro e esbanjando na segunda, mas, para compensar, equilibra-se entre o
grotesco e o lírico.
Do ponto de vista formal, ok, Leonel lança
mão de figuras de linguagem e outros recursos, citados acima, mas, descuida-se
em concordâncias inescapáveis e sinais gráficos mínimos. Em compensação, sua
pulsão desejante fala quase à vontade, sem medo da cultura brasileira,
permissiva no comportamento, moralista no discurso.
As
“descrições grotescas e líricas” em L.F. equilibram-se nos seus versos, digo
mais, elas andam juntinhas, amalgamadas, fundidas, Leonel, artífice de fusões.
Às vezes, no mesmo verso, temos o grotesco e o lírico, o imanente e o
transcendente, o profano e o sagrado. Exemplos há. Qual estilo de época poetiza
por antíteses? Ora, o Barroco, só que o barroco fica no embate entre tese e
antítese (sombra e luz, grotesco e lírico) sem chegar à síntese, Leonel vai
além, ele funde contrários.
“Fremente efemeridade” sintetiza
características da poesia de Leonel Ferreira e ainda mostra outro aspecto não
mencionado até agora: a aptidão do nosso vate para a declamação que, diga-se de
passagem, já impressionou muitos, hoje destreinada. É possivelmente o seu poema
mais festejado. Ei-lo:
Mentes
avassaladas, humanidade torpe
Cinderelas
passeiam pelas avenidas, morte
Pêndulos
sangrentos desgravitados
Circulam
diante do globo
Gritos
se espalham de um ponto para longe [sinestesia]
Gemidos
escurecem o dia [sinestesia]
Pingos
de luz penetram nas vísceras
Escandalizadas
pelos ritmos deletérios
Vidas
murchas peles esticadas [anomia
social, Botox]
Âmago
destroçado, faltam forças
Existências
vãs
Barulhos
penetram entre telhas e teias
Sonhos
perdidos, ilusões presentes
Túmulos
mentais abrem-se
Turvos
e profundos delírios nascem
Existências
vãs
Bioefemeridade [neologismo]
Ridículas
insanidades
Existências
vãs
Meiose
estabelecida [biologismo]
Critérios,
caminhos
Mitologia,
psicologia
Filosofia
etc.
Tudo
que a mente procurou?
Não!!
Ainda procura...
Imaginadas
gotas esgotam de dentro para fora
Luzes
se apagam, resplandecências clareiam.
Vegetais,
animais, minerais
Obedecem
as sinestesias jamais pensadas
Sempre
dentro dos caminhos elípticos sentidas
Existir
para ser
Existência
vã para pensar em morrer
Sendo
para ser existência
Caminhos
lúdicos, decências
Complexadas
também
Sussurros,
gritos
Aromas,
gemidos
A
carne choca, atrita
Mistura
heterogênea
Há
uma carga, não foi pela necessidade
Prostíbulos
gozados de insanidade
A
lua vagueia alucinada por pedregulhos de humanidade
As
estrelas enxergam e representam luz em lúcidas efemeridades
Que
devaneiam no devaneio da existência
Vida
e transcendência.
Prosas poéticas
A poesia em L.F. não se manifesta apenas
em versos, mas também em enérgicas prosas poéticas, como em “Explosõets do
íntimo”, “Canções das almas”, “Flibusteiro” e “Grito medular
ortobiótico”, onde há a mesma tentativa de expressar sensações de um
eu-lírico que sente demais. “Flibusteiro”, ensina Aurélio Buarque de Holanda,
vem do Holandês “vrijbuiter”, pelo Inglês “freebooter”, pelo Francês
“fribustier, flibustier”, que quer dizer “Pirata dos mares dos séculos XVII
e XVIII, ou ainda aventureiro, trapaceiro, ladrão”.
Ora, não escrevi lá atrás que o poeta,
jogando com uma carta a mais, trapaceia? Um fingidor, diria Fernando Pessoa. Ao
elencar “flibusteiro” e não outra palavra, Leonel insinua algo? Quer enfatizar
o aspecto da aventura, da trapaça, da gatunagem ou todas de uma vez? Quer dizer
que o eu-lírico é um flibusteiro? O poeta é um pirata? Um aventureiro da vida,
trapaceiro entre eu-biográfico e eu-lírico, larápio de poéticas alheias?
“Âmago”
Talvez a palavra mais recorrente na poesia
de L.F. seja âmago, não por acaso,
devido a tudo o que já refletimos. Pela última vez, consultemos o pai dos
néscios. Na anatomia vegetal, “âmago” significa “cerne”, é o cerne do caule da
planta, da árvore, onde circula a seiva de nutrientes que mantém funções vitais
do vegetal. Só nessa primeira acepção, podemos ousar associações. Quem prestou
um pouco de atenção às aulas de biologia, sabe que quando se trata do reino
vegetal, lembramos que, em momentos de adversidade (estiagem, queimada, frio), os
vegetais recolhem-se, perdem frutos, flores e até folhas, para concentrar suas
energias vitais na seiva que circula em seu cerne, preservando a vida. Ora, é
assim com o ser humano e com o nosso poeta, também. Eu não escrevi acima que
ele teve momentos de ostracismo? De recolhimento, para depois ressurgir? Então,
já começa por aí, mas vejamos outras acepções de “âmago”.
Por extensão da anatomia vegetal,
impregnou-se ao vocábulo a acepção de “centro,
meio de qualquer coisa”, mas Aurélio Buarque de Holanda nos dá outras
acepções, a saber: “A parte mais íntima
de um ser; a essência, o íntimo, a alma” e exemplifica: “Os soluços vinham-lhe do âmago”. A quarta
e última acepção dada por nosso dicionarista diz que âmago é a “parte fundamental; o principal, a essência:
‘o âmago da questão’ (cf. amago, do
verbo amagar’)”. Por tudo o que refletimos sobre a poesia de L.F., não é por
acaso a recorrência da palavra “âmago”. No âmago do indivíduo, estão recolhidas
e condensadas as experiências sensoriais prazerosas e sofridas mais marcantes
do curso da vida, assim como os mais profundos sentimentos e devoções
espirituais. Lá está o que já foi, o que é, e o imaginamos que virá, passado,
presente e futuro.
Do âmago,
palavra-chave na poesia de L.F., ele extraiu, em tempos de bonança e especialmente
de adversidade, versos eivados de sensações, sentimentos e esoterismos,
nutrientes de sua vivência e poética. Lá, no âmago, está também o centro do seu
eu disperso, o meio onde equilibra contrários, disparates, excessos, rompantes.
Lá está a essência da mensagem poética que quer transmitir, assim como o íntimo
de suas vivências biográficas, transfiguradas em literatura. Lá está a sua
alma, a alma dos bairros que frequentou, a procura de amadas e amigos, mas,
mais do que isso, lá está a sua parte fundamental, o principal, inefável,
incomunicável, o melhor e o pior de si, donde busca arrancar, a fórceps, a sua
poesia das sensações, tentando atingir o ideal de fundir imanência e transcendência.
Vinícius
Fernandes Cardoso,
Novembro de
2015.