terça-feira, 8 de dezembro de 2015

UMA POESIA DAS SENSAÇÕES
Leonel Ferreira entre vida e transcendência
                                             Vinícius Fernandes Cardoso


Toda teoria é cinza e só é verde a árvore de dourados frutos, que é a vida.”
Goethe 
Tempo e espaço, Cronos e Atlas
Leonel Ferreira Melgaço Ribeiro nasceu a 25 de novembro de 1983, em Belo Horizonte-MG, sendo, logo, de Sagitário, signo tido como tendente a liberdade e realização. O poeta conta em breviário biográfico, presente no seu livro Paisagens Polifônicas (2010), as circunstâncias nas quais veio ao mundo:

Nasci, pela primeira vez, numa tarde quase noite em 25 de novembro de 1983, na cidade de Belo Horizonte, local que me proporciona a matéria-prima daquilo que chamo de lirismo áspero e tecido de dor. (...)”.

Esse é trecho do breviário biográfico convencional, mas Leonel também nos oferta um poético, constante nos seus Florais do Tempo (2009), escrito à maneira de um Walt Whitman:

eu Leonel Ferreira... mineiro... feito da junção de um belo horizonte... rompido numa tarde quase noite... mais dia que noite... tarde noite... em novembro de 1983... eu vate de vivências extremas... sagitariano... raposa das estradas derramadas em versos multicolores... (...)”

Até onde sei, Leonel sempre habitou a região limítrofe entre os municípios de Belo Horizonte e Contagem, entre os bairros Camargos e Santa Maria, respectivamente. Estar entre é sintomático dele: entre lugares, entre casos amorosos, entre crenças, entre ocupações, entre identidades, entre eus. Feita a localização no espaço geográfico, é bom lembrar que o nosso poeta teve as suas vezes de viajante solitário-beatnik, estradando pelo país, tendo a cidade do Rio de Janeiro como um dos seus destinos preferidos, seja para desafogo das exigências do trabalho, seja para expansões que a fixação em BH, a seu ver, não permitia. Lembro-me das suas narrações de viagens, sempre floreadas e ricas de detalhes.

Existência e transcendência
O jovem vintanista Leonel transmitia uma forma encantada de ver a existência e a condição humana, sendo muitos os momentos para exemplificar tal afirmação, fiquemos apenas com um, quando, num “Banquete de Ideias”, promovido pelo filósofo e poeta Rodrigo Starling, realizado no SESC da Rua Caetés, em BH, ante a questão “Deus existe?”, respondeu que “sentia Ele”.
O que é “ser humano”, perguntaria o inquieto leitor? Não há consenso. Particularmente, gosto de uma reflexão minha mesma, que compreende o ser humano como um estado de estar entre; aos materialistas, “um corpo com um espírito”, aos espiritualistas, “um espírito com um corpo”. Ora, “estar entre”, como dissemos lá atrás, é fichinha para o nosso poeta, dilema que desencadeou nele, nos seus vinte e poucos anos, talvez insatisfeito com as intermináveis querelas filosóficas, toda uma busca por “Verdade”, como pretensões de “V” maiúsculo.
Para tanto, ele frequentou quase todas as religiões, doutrinas e filosofias disponíveis na região metropolitana de BH e alhures, frequentou missas católicas, cultos e cantos protestantes, ritos afro-brasileiros, adentrou no reencarnacionismo kardecista e namorou a Cultura Racional, até chegar à sua própria “síntese cósmica”, dificílima, indecifrável, que ele explanava sem pregar, sem proselitismo. Como pensador-poeta, isto é, que utiliza a metáfora ao pensar, Leonel encontrou, na poesia, uma espécie de síntese frente aos sucessivos relativismos, quem sabe, pensando que, se a um filósofo é dado questionar, a um poeta é pedido sintetizar. Nesses pensares, Leonel era danado para ter sacadas geniais, uma delas, era a sua noção de “sintonia”, aplicada à relação erótico-amorosa.

Indivíduo versus adaptação social = crise
No campo profissional, psicologicamente e sociologicamente importante para a integração identitária do indivíduo na sociedade ocidental, o jovem Leonel foi servidor-efetivo da Bhtrans (autarquia do município de Belo Horizonte) nos inícios de 2000 (?!), numa época na qual os seus amigos poetas amargavam o desemprego, sendo ele sempre generoso nas contas de bar, nas esmolas a pedintes e, evidente, nas passagens de ônibus! Parecia emprego razoável, mas Leonel, talvez num misto de tédio, estafa e ímpeto de voo, pediu exoneração do cargo. A sua acomodação profissional, se assim podemos dizer, se deu alguns anos depois, no comércio varejista e atacadista. Houve, porém, interregnos até Leonel chegar ao comércio, quando ele tentou algum sustento com os seus poemas; criou uma editora caseira e confeccionou os seus próprios livros, vendendo-os nas ruas, principalmente em frente ao Palácio das Artes, em BH.
Entre meados de 2008 a meados de 2010, fiz um estágio, durante o período vespertino, na Rua Tupis, no Centro de BH. Parte desse período coincidiu com as vendas do poeta em frente ao PdA, de forma que, às vezes, eu me encontrava com ele após o expediente de ambos, a fim de colóquio ou convite para algum evento, mas nos conhecíamos desde antes, sobremaneira dos saraus do Parque Lagoa do Nado e dos “Uivos na Noite” (Centro Cultural São Bernardo). Leonel participou por duas vezes (2005 e 2006) do projeto “Terças Poéticas”, sob a curadoria do poeta Wilmar Silva, nos ditos jardins internos do PdA, numa dessas ocasiões, a sua família compareceu. Participou do projeto “Poesia na Praça Sete” (2010), do casal de poetas Rogério Salgado e Virgilene Araújo. O menino fazia estrada e currículo. 
Houve um período límbico, porém, que não sei precisar no tempo, no qual o nosso poeta, talvez frustrado com as dificuldades e limitações das vendagens nas ruas como modo de vida, fez recuo estratégico e ‘suspendeu’ a sua faceta de poeta, enfatizando outra faceta sua, a de empreendedor, circunstância que eu aferi no seu Facebook (rede social da Internet), quando ele trocou o seu perfil de “Poeta Leonel Ferreira” para “Empresário Leonel Ribeiro”, manipulando sobrenomes conforme o estado psíquico vivido.
Ora, todo ser humano passa por crises de identidade, algo comum e recorrente; o artista, então, sofre muito com isso, entre as ingratas artes e a adaptação a uma sociedade que cobra resultados práticos e materiais. Eu não via problema algum nele querer ganhar dinheiro, só não entendia que, para isso, ele precisasse, necessariamente, negar o seu talento de poeta. Foi quando, sentido a sua ausência e empático com a sua situação, escrevi um poema intitulado “A um poeta cósmico”, dedicado a ele, datado de fevereiro de 2008. Eis o poema:

Ó poeta cósmico dos Camargos caminhos,
hedonista dos prazeres femininos e arauto do saraus enluarados,
tu que tens dentro a festa, dândi suburbano das sociais vestes,

Ó poeta da religação, monge sem religião, difusor de espiritualidades indecifráveis,

Andarilho da geração castrada, preocupando mãe e namorada.

Onde andas Leonel que não mais presenteia a vida literária,
de convenientes contatos, chão de ovos, mas de tua raça laia,
foram-te maus amigos tal gente desencontrada?

Ó poeta dos adjetivos, onde andas nessa vida de estrada?

Nós que quando nos encontrávamos, sempre oportunamente, nos festejávamos?

Ainda escreves? Ou encontrou material melhor para despejar tua pulsão?

Ou encontrou de fato a felicidade? (A escrita contenta, mas sei que para ti não bastava).

Era boa tua companhia com nossa turma nas madrugadas, nas caminhadas errantes a procura de nadas, encantos que nos enchiam curando cotidianos enfados, mas, agora, ausente, registro tua falta...    

Ó poeta verborrágico de sorriso largo, vislumbrado por tudo e festeiro do asfalto...  

Onde está tua verve que enchia o ar de palavras?

Tu, caminhante de beiras de autoestradas, viajante solitário em busca de amadas,

Tu que tens o senso do divino, duvidando das letras, desencantando da gentalha...

Ó leitor de Cruz e Souza e autor das ressonâncias do ocaso que esbravejava seus versos às faces enfastiadas, onde andas, num mosteiro ou nas praças abandonadas?

Tu, perseguidor da transcendência, encontraste-a? Descobriste-a na imanência?

Tu, ausente, tens o lugar assegurado, no assento, no tablado, tu, poeta cósmico!   

“Um poeta ressuscitado”
Após a leitura do poema, Leonel retomou o seu anterior perfil no Facebook e, mais importante do que isso, ele reassumiu a sua faceta de poeta! Em momentos de descontração entre comuns, já galhofei que “ressuscitei Leonel”, em tom espirituoso, para graça geral. Era uma forma bem humorada que encontrei para aliviar um assunto deveras doloroso.
Quem não passou por crises de identidade, por fases de indecisão ou mesmo pela sensação de estar perdido na vida? Por eu ter passado por crises do gênero, sou empático às alheias. Um dia, ainda componho um poema que sirva de cura terapêutica aos perdidos na vida, de forma que, ao fim da leitura, o leitor encontre-se e pacifique-se, de preferência, por muitíssimo tempo (leiam “Oração de mim mesmo”, de minha autoria).
Dito isso, ao ouvir o psicanalista Geraldo Caldeira (que admiro) em uma das suas aparições no jornal MGTV, da Rede Globo Minas, que imagino lidar com tal assunto há mais tempo clinicamente, ouvi dele que a melhor prevenção à depressão (boto à reboque, por minha conta, indecisão, crises de identidade e congêneres) é a convivência, o que faz sentido, pois, é no entrave das diferenças de personalidade que identificamos ou confirmamos a nossa; outra prevenção, penso, é ter a sabedoria que o ser humano é mutável, troca de pele ao longo da vida; reconhecer, humildemente, a nossa natureza “mutante”, penso, pode ajudar a nos aceitar como somos e estamos.

Você gosta de poesia?
Leonel ressurgiu em 2015 em plena criatividade, com o pseudônimo de L. Lagares, o que insinua que as suas trocas de pele continuam a todo vapor e que também podemos esperar novas safras suas, a exemplo da prosa Aquarela de um sonho distorcido (2015), de tônica confessional.
Nos dias em que eu trocava figurinhas com o poeta, por volta de 2009 e 2010 (as datas mentem), consegui quatro livros dele, produzidos pelo autor de forma artesanal, sob o selo “Nix Edições” (nove-hora), bem feitos por sinal, em papel reciclado, com interior recheado de arabescos, bordas e cantoneiras, lembrando de longe as edições “art nouveau” francesas. Importante noticiar, em tais livros, não a ordem editorial, mas a ordem cronológica dos poemas, o que pode ajudar a captar alguma genealogia dos mesmos e alguma modulação temática e estética ao longo do tempo.
Se por firula ou loucura, não importa, acontece que Leonel dispersou a sua obra entre muitas coletâneas e títulos, seu mais recente blog (http://llgares.blogspot.com.br) elenca a seguinte obra publicada: Ressonâncias do ocaso (2008), Paisagens Polifônicas (2010), Sinfonia do (eu) Quebrado (2014), Florais do tempo (livreto 2008) e Aquarela de um Sonho Distorcido (2015), mas sabemos que a sua obra publicada teve outros nomes, inclusive, reuniões de poemas não publicados, como “Kappus de Delacroix e os Delírios Inevitáveis”, “Líquido Atroz” e “Ortobiose e Outras Hiperestesias”.
Atenho-me, como não poderia deixar de ser, ao que li, a começar por Hipertesia, versos escritos entre “2007, 2008 e um de 2010” (costumo considerar os primeiros versos de um poeta importantes, sintomáticos); é o livrinho mais fininho dos quatro lidos, talvez daí a informação “Fanzine”, presente na capa. Na sequência, li Florais do tempo, com versos escritos na “primavera de 2009”, onde consta a biografia poetizada, citada no início. Em seguida, Ressonâncias, datado do “verão de 2010”. Por fim, li o conjunto Paisagens polifônicas, de “dezembro de 2010”, onde há a biografia convencional, além de dedicatória informativa e reveladora.
Infelizmente, não tenho comigo a coletânea Ressonâncias do ocaso (2008) aqui agora para folhear de cabo a rabo, mas posso ter lido poemas presentes nela, uma vez que nosso poeta tem o vezo de reproduz os mesmos poemas noutra reunião.    

Uma poética das sensações: sinestesias, biologismos
A poesia de Leonel Ferreira transmite sensações, logo, é natural que ela valha-se de recursos literários que as expressam, como é o caso da sinestesia, recorrente. O bom e velho Dicionário Aurélio ensina-nos que sinestesia vem do grego “aísthesis”, “sensação”, significando:

Relação subjetiva entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente (por exemplo, um perfume que evoca uma cor, um som que evoca uma imagem. Exemplos: “Avista-se o grito das araras” (João Guimarães Rosa); “Tem cheiro a luz, a manhã nasce... / Oh sonora audição colorida do aroma!” (Alphonsus de Guimaraens)

Vejam vocês, há sinestesias até nos títulos dos livros do nosso poeta, como Florais do tempo e Paisagens polifônicas; mesmo nos outros livros citados, exploram-se as sensações: Hipertesia, soma do prefixo “hiper” com o substantivo “estesia”, resume Aurélio Buarque de Holanda, é a “sensibilidade excessiva a qualquer estímulo”; Ressonância, como todos sabem, é o ato de ressoar, fazer soar, entoar e outras acepções relacionadas a som. No poema “Patamares do Silêncio”, fora a sinestesia, há a presença das maiúsculas alegorizantes, ao gosto do Simbolismo, outro recurso largamente utilizado por Leonel Ferreira.
Na sua poesia, há forte presença de vocabulário biológico, como o recorrente “ortobiose”, verdadeiro achado do nosso poeta, cujo significado nos assegura o citado pai dos burros:

Vida normal ou conforme as leis da natureza: “a civilização nunca conduziu, nem conduzirá, à felicidade, à harmonia, à ortobiose humana” (Júlio Dantas, Espadas e Rosas, p. 50). 
        
Os biologismos em L.F., geralmente, estão associados ao erotismo, aliás, força motriz da sua poesia. Quando tais biologismos não estão associados ao erotismo? Por vezes com função naturalista-harmonizante, como “ortobiose”, mas também “meiose estabelecida” (Fremente Efemeridade), “meiose”, “mitose” (Elástico), fora outros empregos. No mais, os termos referentes à materialidade biológica constitutiva do ser humano estão associados ao sexo: “Prazeres orgânicos”, “Explosões do íntimo”, “Consubstanciação corpo e alma”, títulos de poemas ou sequências poemáticas presentes em Paisagens polifônicas
Dito isso, o leitor, rápido e rasteiro, logo pensará: “Ah, esse cara é apenas um tarado, só isso”, ou então, com ares intelectuais: “A poesia dele é apenas uma das manifestações do seu erotismo”. Acontece, caro leitor, que um Poeta nem sempre é um jogo de cartas abertas, ora, artimanhoso, joga com carta a menos, ora, trapaceiro, joga com carta a mais. Vejam vocês, em Paisagens polifônicas, há uma sequência poemática que destoa de todos os outros poemas presentes na coletânea, refiro-me ao enigmático “Poemas para Isa” (pgs. 79-94). Ali está um poeta altaneiro cantando a uma amada não possuída: “Minha alma peregrina e extravagante / gostaria de leva-la no alto de uma colina / onde houvesse um altar estranho e silencioso / para então sermos atados / em um sopro de eternidade (...)”.
Vejam como mudou a forma de abordar, não mudou?

“Poesia beatnik-simbolista”
Antes de escrever este texto, confesso, fiz uma pesquisa no site de busca Google, a fim de encontrar referências a Leonel Ferreira, não somente sobre ele enquanto indivíduo e poeta, mas em relação aos seus poemas, já esperando encontrar alguma coisa vinda de Leonardo de Magalhaens, escritor, poeta, crítico e tradutor mineiro, além de amigo comum meu e de Leonel. Não deu noutra, o Google apontou excerto de ensaio do Magalhaens, não exclusivo sobre a poesia de Leonel, mas trecho de ensaio sobre originalidade na Literatura, no qual Magalhaens cita:     

(...) Lembrei em seguida do poeta e bardo Leonel Ferreira, que - segundo as boas críticas - faz uma interessante fusão de Cruz e Sousa e Fernando Pessoa, associando formalismo e subconsciência, em descrições grotescas e líricas de sua poesia beatnik-simbolista. (...)

Desdobrando, aproveito a deixa do crítico para tratar das “influências literárias” de Leonel Ferreira, assunto geralmente falho e passível de refutações. Para não nos perdemos, primeiro desconsidero as influências do nosso poeta enquanto leitor e ser humano, ficando apenas com as influências que nos importam aqui, qual sejam, aquelas que possam ter se plasmado aos seus versos formalmente realizados, o que se materializou em escrita, deixando rastros de poéticas de outros autores.
Magalhaens teve motivos para citar Cruz e Souza, Fernando Pessoa e a poesia beatnik como influências de L.F.; Cruz e Sousa, provavelmente, pelas sinestesias, aliterações, maiúsculas alegorizantes, figuras de linguagem, temática, além de identificação biográfica com o autor de Missais e “O Emparedado”, o que me parece acertado. Não duvido que Leonel identificou-se com Fernando Pessoa como leitor e ‘pessoa’, só não sei se tal influência se materializou em sua linguagem poética, sobremaneira na questão dos heterônimos pessonianos. Sim, vejo inquietações de “eus” no indivíduo Leonel, como disse no início, mas não nos seus poemas que, a meu ver, apresentam a mesma voz poética, as mesmas temáticas recorrentes (sensações, erotismo), não vejo um heterônimo “a” distinto de um heterônimo “b” ou “c”, como lemos nos heterônimos do grande bardo lusitano.
Quanto a alguma influência da poesia beatnik (EUA, 1950-1960) em Leonel Ferreira, novamente, a vejo mais no leitor e no indivíduo estradeiro, como explanei no início. “Ah, Vinícius, questiona o corajoso leitor que chegou até aqui: vida e obra não vão juntas? o poeta não é fusão de eu-biográfico e eu-lírico?”. Ainda não resolvi isso totalmente (me perguntem em ensaios seguintes), mas penso que sim, desconfio que nos autores que vivem antes de escrever, sim, é possível que o poeta seja uma fusão de eu-lírico e eu-biográfico, mas voltemos e continuemos. 
Como sabem, não há uma “poética beatnik”, existem os poemas de Allen Ginsberg, os de Gregory Corso, de Carl Solomon, de Ferlinghetti, exponentes da beat generation, cada poesia diferente da do outro, talvez unidas por um único recurso, qual seja, a indexação, isto é, a citação de circunstâncias, lugares, pessoas e épocas datadas. Ora, Leonel só indexa pessoas e lugares aos seus poemas nas dedicatórias e informações finais, quando, às vezes, coloca o local onde escreveu (“derramou”, como ele diz) o poema: o Cais Marina da Glória, na cidade do Rio de Janeiro é campeão de citações nesse quesito, onde, perto dali, o poeta pernoitou em praça. Dito isso, vejo uma espontaneidade, uma atmosfera rueira, um libertarismo temático nos poemas de Leonel, que lemos nos poemas dos beat’s.      

Mentores que encorajam
Antes das “influências literárias” autorais, percebo nos poemas de Leonel Ferreira uma presença naturalista e simbolista. Na sua poesia, há vocábulos próprios da Biologia, achados com lupa no dicionário, a fim de expressar os seus pensamentos que “fundem” materialismo com utopias harmonizantes (é o caso de “ortobiose”), juntinho com figuras de linguagem próprias do Simbolismo; Leonel quer fundir, quer interpenetrar contrários. Não é à toa que nosso poeta bebeu em Augusto dos Anjos (1884-1914), que lhe serviu de fonte para sorver vocábulos cienticifistas, materialistas, biologizantes, trabalhados com ‘poeticidade elevada’. Cruz e Sousa lhe muniu de recursos de linguagem e multiplicidade de gradações sensoriais, transfiguradas em belas letras, além de identificação enquanto poeta negro no Brasil, o caso de Leonel.   
O breviário biográfico poético, citado no início, remete-nos a outro mentor e influência que penso ele ter, refiro-me a Walt Whitman; reconheço, naquele breviário Leonel abusou das reticências, mas, ora bolas, ele se saiu bem, penso que leva jeito para explorar aquela dicção exuberante e vigorosa do grande bardo americano, vivência e estofo Leonel possui.    
Mentor é aquele a quem nos identificamos e que nos encoraja a seguir o nosso carma (o conjunto das ações dos homens e suas consequências), seja nas realizações da vida, seja na escrita (que não deixa de ser realização). Ora, Leonel tem as suas declaradas, a começar por José Carlos do Patrocínio (1854-1905), um dos mais ferventes próceres a favor da abolição da escravatura no Brasil, ou simplesmente o “tigre da Abolição”, como nosso poeta mesmo nos informa no seu livro Ressonâncias (2010), onde dedica três páginas sobre vida e obra daquele jornalista, orador, poeta e romancista carioca novecentista e uma página com o poema “A memória de Tiradentes”, de José do Patrocínio, publicado originalmente no jornal “A República”, em 1871.
Negro, literato e libertário, assim como Cruz e Sousa e José do Patrocínio, compreensível Leonel tê-los em alta conta e ser leitor da obra de ambos. Aliás, ele é ledor de vasto repertório, algo que infelizmente não trataremos aqui. Avante!  

Influência e renovação
Ao citar as observações de Leonardo de Magalhaens sobre a poesia de Leonel Ferreira, quero aproveitar o que já foi refletido para tentar avançar. Desdobrando, temos mais esse trecho de Magalhaens, no qual ele menciona alguma possível associação de “formalismo e subconsciência em descrições grotescas e líricas” na poesia de L.F.
Se fosse para sintetizar, aqui eu diria o seguinte: sua poesia desequilibra-se entre formalismo e subconsciência, pecando no primeiro e esbanjando na segunda, mas, para compensar, equilibra-se entre o grotesco e o lírico.
Do ponto de vista formal, ok, Leonel lança mão de figuras de linguagem e outros recursos, citados acima, mas, descuida-se em concordâncias inescapáveis e sinais gráficos mínimos. Em compensação, sua pulsão desejante fala quase à vontade, sem medo da cultura brasileira, permissiva no comportamento, moralista no discurso.
 As “descrições grotescas e líricas” em L.F. equilibram-se nos seus versos, digo mais, elas andam juntinhas, amalgamadas, fundidas, Leonel, artífice de fusões. Às vezes, no mesmo verso, temos o grotesco e o lírico, o imanente e o transcendente, o profano e o sagrado. Exemplos há. Qual estilo de época poetiza por antíteses? Ora, o Barroco, só que o barroco fica no embate entre tese e antítese (sombra e luz, grotesco e lírico) sem chegar à síntese, Leonel vai além, ele funde contrários.
Fremente efemeridade” sintetiza características da poesia de Leonel Ferreira e ainda mostra outro aspecto não mencionado até agora: a aptidão do nosso vate para a declamação que, diga-se de passagem, já impressionou muitos, hoje destreinada. É possivelmente o seu poema mais festejado. Ei-lo:

Mentes avassaladas, humanidade torpe
Cinderelas passeiam pelas avenidas, morte
Pêndulos sangrentos desgravitados
Circulam diante do globo
Gritos se espalham de um ponto para longe [sinestesia]
Gemidos escurecem o dia [sinestesia]
Pingos de luz penetram nas vísceras
Escandalizadas pelos ritmos deletérios
Vidas murchas peles esticadas [anomia social, Botox]
Âmago destroçado, faltam forças

Existências vãs

Barulhos penetram entre telhas e teias
Sonhos perdidos, ilusões presentes
Túmulos mentais abrem-se
Turvos e profundos delírios nascem

Existências vãs

Bioefemeridade [neologismo]
Ridículas insanidades

Existências vãs

Meiose estabelecida [biologismo]
Critérios, caminhos
Mitologia, psicologia
Filosofia etc.
Tudo que a mente procurou?
Não!! Ainda procura...
Imaginadas gotas esgotam de dentro para fora
Luzes se apagam, resplandecências clareiam.
Vegetais, animais, minerais
Obedecem as sinestesias jamais pensadas
Sempre dentro dos caminhos elípticos sentidas

Existir para ser
Existência vã para pensar em morrer
Sendo para ser existência
Caminhos lúdicos, decências
Complexadas também

Sussurros, gritos
Aromas, gemidos
A carne choca, atrita
Mistura heterogênea
Há uma carga, não foi pela necessidade
Prostíbulos gozados de insanidade
A lua vagueia alucinada por pedregulhos de humanidade
As estrelas enxergam e representam luz em lúcidas efemeridades
Que devaneiam no devaneio da existência

Vida e transcendência.

Prosas poéticas
A poesia em L.F. não se manifesta apenas em versos, mas também em enérgicas prosas poéticas, como em “Explosõets do íntimo”, “Canções das almas”, “Flibusteiro” e “Grito medular ortobiótico”, onde há a mesma tentativa de expressar sensações de um eu-lírico que sente demais. “Flibusteiro”, ensina Aurélio Buarque de Holanda, vem do Holandês “vrijbuiter”, pelo Inglês “freebooter”, pelo Francês “fribustier, flibustier”, que quer dizer “Pirata dos mares dos séculos XVII e XVIII, ou ainda aventureiro, trapaceiro, ladrão”.
Ora, não escrevi lá atrás que o poeta, jogando com uma carta a mais, trapaceia? Um fingidor, diria Fernando Pessoa. Ao elencar “flibusteiro” e não outra palavra, Leonel insinua algo? Quer enfatizar o aspecto da aventura, da trapaça, da gatunagem ou todas de uma vez? Quer dizer que o eu-lírico é um flibusteiro? O poeta é um pirata? Um aventureiro da vida, trapaceiro entre eu-biográfico e eu-lírico, larápio de poéticas alheias?

“Âmago”
Talvez a palavra mais recorrente na poesia de L.F. seja âmago, não por acaso, devido a tudo o que já refletimos. Pela última vez, consultemos o pai dos néscios. Na anatomia vegetal, “âmago” significa “cerne”, é o cerne do caule da planta, da árvore, onde circula a seiva de nutrientes que mantém funções vitais do vegetal. Só nessa primeira acepção, podemos ousar associações. Quem prestou um pouco de atenção às aulas de biologia, sabe que quando se trata do reino vegetal, lembramos que, em momentos de adversidade (estiagem, queimada, frio), os vegetais recolhem-se, perdem frutos, flores e até folhas, para concentrar suas energias vitais na seiva que circula em seu cerne, preservando a vida. Ora, é assim com o ser humano e com o nosso poeta, também. Eu não escrevi acima que ele teve momentos de ostracismo? De recolhimento, para depois ressurgir? Então, já começa por aí, mas vejamos outras acepções de “âmago”.
Por extensão da anatomia vegetal, impregnou-se ao vocábulo a acepção de “centro, meio de qualquer coisa”, mas Aurélio Buarque de Holanda nos dá outras acepções, a saber: “A parte mais íntima de um ser; a essência, o íntimo, a alma” e exemplifica: “Os soluços vinham-lhe do âmago”. A quarta e última acepção dada por nosso dicionarista diz que âmago é a “parte fundamental; o principal, a essência: ‘o âmago da questão’ (cf. amago, do verbo amagar’)”. Por tudo o que refletimos sobre a poesia de L.F., não é por acaso a recorrência da palavra “âmago”. No âmago do indivíduo, estão recolhidas e condensadas as experiências sensoriais prazerosas e sofridas mais marcantes do curso da vida, assim como os mais profundos sentimentos e devoções espirituais. Lá está o que já foi, o que é, e o imaginamos que virá, passado, presente e futuro.
Do âmago, palavra-chave na poesia de L.F., ele extraiu, em tempos de bonança e especialmente de adversidade, versos eivados de sensações, sentimentos e esoterismos, nutrientes de sua vivência e poética. Lá, no âmago, está também o centro do seu eu disperso, o meio onde equilibra contrários, disparates, excessos, rompantes. Lá está a essência da mensagem poética que quer transmitir, assim como o íntimo de suas vivências biográficas, transfiguradas em literatura. Lá está a sua alma, a alma dos bairros que frequentou, a procura de amadas e amigos, mas, mais do que isso, lá está a sua parte fundamental, o principal, inefável, incomunicável, o melhor e o pior de si, donde busca arrancar, a fórceps, a sua poesia das sensações, tentando atingir o ideal de fundir imanência e transcendência.

Vinícius Fernandes Cardoso,

Novembro de 2015.