Textos classificados (não publicados) no Desafio Literário de Janeiro
5ºlugar – Os dilcumentos de Seu Aldrovando – Delmar Bertuol
Os Dilcumentos do Seu Aldrovando
Precavido e receoso de esquecer algum item importante, sobretudo a gilete de barba ou o remédio da pressão, Seu Aldrovando arrumou a mala na véspera. Era a primeira vez que ia pro estrangeiro. Também nunca tinha andado de avião.
Tal qual uma puta velha, que por ossos do ofício já viu e ouviu de um tudo nesta vida, Seu Aldrovando, por motivos diversos aos das meretrizes, também já havia visto um bocado de coisas. Não se impressionava com qualquer expediente. Não estava, portanto, temeroso de andar de avião. Cético, como são os idosos e as putas velhas, sabia que não correria maior perigo de que quando andava com o seu Gol 92 nesse insano trânsito.
No aeroporto, a filha o conduziu para o xêquim. Sua esposa, também estreante nesse tipo de viagem, estava maravilhada com o luxo do terminal aéreo. Seu Aldrovando, por sua vez, procurava o banheiro. Queria fazer xixi antes de embarcar. Decerto que até chegar ao Peru é um bocado de tempo. Quando despacharam a mala do Seu Aldrovando naquelas esteiras intermitentes, ele entrou em desespero. Solicitou ajuda da filha.
-Meus dilcumentos, filha. Meus dilcumentos ficaram todos na mala.
A filha, gracejando da situação, tratou de acalmá-lo. A bagagem iria junto no avião. Na chegada ele pegaria os “dilcumentos” de volta. Dentro do avião, a esposa do Seu Aldrovando não escondeu um receio quando ouviu o barulho das turbinas. Apertou muito a mão do seu marido que, por sua vez, deu-lhe três tapinhas com a outra mão na face da mão desesperada, para acalmá-la.
Já em outro país, Seu Aldrovando não achou nada demais a Cidade de Lima e arredores. Ao contrário dele, sua esposa estava maravilhada com tudo. Gostava, ao contrário do marido, de novidades.
Mais experientes, na volta pra casa tudo foi mais tranquilo. Mesmo assim, Seu Aldrovando teve que novamente acalmar a mulher na decolagem. Antes disso, porém, levou de súbito a mão à altura do peito. Ficou tranquilo. Os dilcumentos, dessa vez, estavam no bolso da camisa.
6ºlugar- Douglas Velloso
Minha querida filha. Dessa vez espero que você ultrapasse as primeiras linhas do papel. Escrevo a você para que se lembre de seu pai. Faz vinte anos que você deixou a casa que nunca lhe acolheu. Uma frase que você mesma ainda deve dizer. Esse lugar nunca me acolheu. Faz vinte anos que você deixou seu pai, marcada pela dor da incompreensão. Seu pai é um homem rude, machista e infiel. Você sabe que tudo na vida dele foi um mar de rispidez e ignorância. Sim minha filha, ignorância. Seu pai não teve a oportunidade de ver nada nascer, nem sequer o que ele mesmo plantava. Sua única ordem era o cansaço. Sua única certeza era que o sol era o seu relógio. E hoje ele nem sequer pode enxergar o tempo. Sua única diversão é a bebida, seguida por gritos de ordem. Minha filha, seu pai não é um doente ou um escravo da cegueira. Ele é apenas incapaz de mudar de opinião. Nem você, a coisa mais perfeita que ele teve nas mãos, fez isso mudar. Sei que as últimas palavras dele a você hoje são cicatrizes; que você percebe no espelho, quando chora. Minha filha, não peço a você que apareça ou que escreva palavras falsas em um papel qualquer. Peço apenas que você se lembre do seu pai sem mágoa ou rancor. Apenas busque perdoá-lo, lembre que ele precisa de ajuda, e não de acusações. O tempo já lhe mostrou as consequências, as reações. Seja mais inteligente do que ele e não deixe para resolver essa mágoa quando seu pai se for e você ser inundada pelo remorso. Lembre do seu pai, por o momento de um instante. Reze por ele, se ainda acreditar em Deus. Quanto a mim, não se preocupe. Estou feliz em perceber que tudo que passei me faz hoje perceber que os erros que cometi não se repetirão nunca mais. Mesmo porque hoje já não me resta tanto tempo assim.
Doug Velloso
7ºlugar- A viagem – José Huguenin
A viagem
Por: José Huguenin
Enquanto caminhava na passarela a caminho da decolagem lembrou-se com emoção do dia em que sua vida transformou-se. Neste dia pôde ouvir seu coração enquanto corria para casa de seu Homero, dono da única televisão do vilarejo. Ele sempre chamava a todos para assistirem aos grandes eventos. De longe, via o povaréu na porta da sala. Em sendo pequeno, foi ocupando os espaços, escorregando entre os presentes na sala apinhada. Seu Homero usava terno. Era uma ocasião solene. Chegou o mais perto que pôde. A imagem era ruim. Era um dos poucos que acreditavam no feito. Ouvia-se entre os chiados:
- Um pequeno passo para um homem...
Um barulho o desperta. Uma porta se abre e ele entra. Acomoda-se no assento e afivela o cinto. Lembra-se de quanto medo sentiu quando partiu em busca do sonho e agora esta ali.
- … um salto gigantesco para humanidade! Continuou a lembrar...
A família não foi despedir-se dele quando saiu do vilarejo. O tinham por louco e fora deserdado. Clarissa foi. Morena com os olhos da cor de dia ensolarado. Pelas lágrimas derramadas, mostrou corresponder ao amor que declarou a ela no dia anterior. Quase desistiu do sonho, mas o ônibus já havia partido. Deixou-se ir. A família, agora, estava ali para as despedidas de praxe por ocasião destas viagens. Menos Clarissa. Já havia tomado outro rumo.
O comando avisa à tripulação que iriam partir. Ouve seu coração como naquele dia. Inicia-se, enfim, a contagem regressiva:
- Cinco, quatro, três, dois, um!
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